Já passa da uma da manhã e, nas minhas deambulações como guarda-nocturno, ouço um ruído estranho. Um ressonar que me leva a aproximar daquela vivenda de um bairro habitacional da Torraltinha, nos limites de Lagos. Qual não é o meu espanto quando percebo que o autor de tamanha sonoridade é um pastor-alemão, um cão de guarda que supostamente deveria estar a ajudar-me no trabalho! Ele lá continua entregue ao sono, sem dar pela minha presença ou de qualquer outro transeunte. Pensei logo que, com "ajudas" destas, a minha noite poderia ser complicada...
Mesmo falando junto ao muro da casa com um popular, que se congratulava com o facto de não haver há muito tempo qualquer assal- to naquela área residencial - onde os cães de guarda normalmente não param de ladrar quando alguém passa perto das moradias, garantia -, a soneca do pastor-alemão acabou por causar estranheza. "Deve ter jantado tão bem, que nem consegue despertar, apesar do barulho. Se a dona souber, ainda lhe corta a ração", graceja o vizinho. Só para perceber se, afinal, o animal despertava, ainda falei durante alguns minutos com o indivíduo no mesmo local. Mas o bom do pastor-alemão, que não estava visível, nem sequer soltou um latido. E também não havia ali perto um outro cão de guarda que o alertasse para a presença de um estranho junto à vivenda.
No silêncio da noite, entre a zona da Torraltinha, Praia da D. Ana e Porto de Mós, numa extensão de cerca de quatro quilómetros, não se via uma única movimentação suspeita, nem vivalma na maior parte do tempo. De vez em quando, lá aparecia uma ou outra pessoa silenciosamente a regressar a casa.
Um jovem seminu
Olho atentamente para estabelecimentos comerciais, já encerrados, e aponto a lanterna para carros estacionados na Praça do Poder Local, na Torraltinha. Em seguida, faço o mesmo junto à porta de um edifício, que está fechada. Tento ver ao pormenor se está mesmo tudo em ordem, espreitando e orientando a luz para o pátio. Por várias vezes. Quero certificar-me de que não se encontra ninguém escondido numa das paredes à espera que eu deixe o local.
Com o ambiente calmo e a situação controlada, atravesso a zona em direcção a outras áreas residenciais. Três jovens, com sinais de embriaguez, cumprimentam-me discretamente com uma "boa-noite" em português e seguem, de imediato, sem olhar para trás. Percebe-se pela pronúncia que são estrangeiros. Um deles, com toda a naturalidade, marca a diferença de forma insólita ao caminhar nu da cintura para baixo e com as calças na mão. Alguém que entretanto passa na zona observa para um amigo: "Podes ter a certeza de que ele apostou em como era capaz de andar assim na rua. Mas o rapaz não faz mal nem a uma mosca. Só está é com calor"
Numa situação deste tipo e sobretudo porque o movimento de madrugada nesta época do ano é praticante nulo, acaba por ser preferível a um guarda-nocturno ignorar o que viu. Se a polícia fosse chamada para um caso que poderia eventualmente configurar numa situação de atentado ao pudor (embora o jovem, entre os companheiros, não estivesse a exibir--se para alguém em particular), o mais que deveria acontecer era o indivíduo (meio) nudista ser identificado. Isto se, entretanto, não se vestisse rapidamente.
Mais adiante, um homem anda a passear o cão e pergunto-lhe se está tudo bem. A resposta é afirmativa e lacónica. O ambiente está sereno. Talvez até em demasia, numa altura em que no País, em geral, e no Algarve, em particular, continua a pairar um sentimento de insegurança.
"Continência!"
A noite já vai longa e decido mudar para outras zonas, embora fora da minha área de actuação, e entro no centro da cidade de Lagos, junto a bares. Aqui, onde fico até às 03.00, a madrugada está animada, com muitos jovens na rua. Mas tudo dentro da normalidade. "É com certeza um guarda novo nesta zona, pois nunca o tinha visto", nota, surpreendida, uma jovem esbelta de minissaia, com sotaque brasileiro. "É melhor fazer-lhe continência!", ordena-lhe, com ironia, um ami- go. Noto que o grupo, constituído por meia dúzia de indivíduos, sensivelmente entre os 20 e 30 anos, está, acima de tudo, bem-disposto. Um deles, ao reparar, de longe, num flash da máquina do repórter fotográfico do DN, Miguel Veterano Jr. (pensava tratar-se de um turista a fotografar as noites algarvias, como tantas vezes sucede), exige logo uma foto comigo para recordação. Para não sofrer qualquer hostilidade, acabo por ter de aceitar, após o que o grupo de amigos foi à sua vida.
Pergunto a uma rapariga, na casa dos 20 anos, que apressa o passo para chegar ao carro e regressar a casa, se está tudo em ordem, numa zona susceptível de conflitos nocturnos. "Até agora, não houve qualquer problema. De resto, as noites têm sido calmas. Mas acho que vocês, polícias, não se deviam preocupar apenas com o movimento nos bares. Há muitas zonas de Lagos onde à noite nem se vê um único agente de segurança. É lá por onde deviam andar para permitir mais tranquilidade a quem vai para casa", apela a jovem. Prome- to-lhe dar conta dessa preocupação aos meus superiores hierárquicos. Tentando interpretar o melhor possível o papel de um guarda-nocturno, vou observando discretamente o movimento junto a outros bares, até que paro à porta de um, situado perto do histórico Mercado dos Escravos, onde se juntam vários populares. A maioria olha-me com desconfiança. "Nunca vi este tipo por aqui. Deve ser estagiário", observa um deles.
"Já vi vários polícias numa rua e agora aparece um guarda-nocturno nesta. O que será que está para acontecer? Querem fechar os bares?", interroga-se um segurança de um desses estabelecimentos. "Aqui está tu-do calmo, amigo, gostaria é de ter mais clientes. Só o Verão poderá animar isto", nota um homem, para quem "basta a presença do Corpo de Intervenção da PSP", nessa altura do ano, para evitar qualquer desacato.
Abrigo abandonado
Seguindo o apelo da tal jovem, que pede reforços policiais noutras zonas, desloco-me para uma área residencial afastada da cidade. Aqui o silêncio volta a ser de ouro, só quebrado pelo ladrar vindo de um prédio. Uma situação que pode incomodar os vizinhos e originar queixas. Mas ninguém se manifesta. Nem se vê uma única luz no interior das habitações. Sigo em direcção à estrada da Ponta da Piedade, entro na urbanização Costa d'Ouro, junto a um antigo edifício da Torralta, inacabado e há décadas abandonado, que por vezes se transforma em abrigo de toxicodependentes. Mas também ali ninguém dá sinal de vida. Apenas uma moradia exibe um vistoso alarme em azul luminoso. Se tocar, corre o risco de acordar a vizinhança. A ronda incide agora junto à praia do Porto de Mós, onde me certifico de que as portas de um restaurante estão bem fechadas. Já ao passar ainda por uma moradia que funciona como pequena unidade hoteleira, reparo que algumas portas de acesso ao empreendimento não estão encerradas. Não, não há assaltantes por perto. É que, possivelmente, algum funcionário ter-se-á esquecido de as fechar. De resto, está tudo em ordem.Numa altura em que o País se continua a debater com graves proble-mas ao nível de segurança, nesta curta experiência como guarda-noc- turno percebi que a presença de um uniforme ainda é encarada com respeito, nomeadamente pelos mais jovens junto a estabelecimentos de diversão nocturna. A sempre tão reclamada presença de policiamento de proximidade , fiquei convicto, funciona como factor de dissuasão para criminosos e como forma de garantir segurança para residentes e turistas.