Acredita-se que prédio onde funciona a mais antiga ourivesaria da cidade remontará ao século XIV
É com minúcia de ourives que se trabalha naquele prédio, na esquina da Rua das Flores com a dos Caldeireiros, onde cabe parte da história do Porto. A obra já chegou ao rés-do-chão, à ourivesaria mais antiga do cidade, que é para renovar em tempo recorde.
O edifício remontará ao século XIV e conserva sinais dessa longa vida. É certo que foi sofrendo alterações, foi dividido por dentro, mas há pormenores que se mantêm e que ficarão para as gerações futuras porque o arquitecto que o está a reabilitar, Joaquim Massena, insistiu em "respeitar a memória", interior e exterior, em vez de demolir o miolo e conservar apenas a fachada.
Acredita-se que o edifício - que deverá ficar totalmente renovado no final deste mês - integrava o Hospital Rocamador, construído pela Misericórdia para tratar os enfermos entre os séculos XV e XVIII. Antes foi uma albergaria para os peregrinos que faziam o caminho de Santiago de Compostela. No interior ainda se vêem as arcadas, que fariam parte de um claustro.
Os pisos superiores do imóvel, destinados a habitação, começaram a ser recuperados em Setembro passado. A obra já chegou ao rés-do-chão, onde funciona a Ourivesaria Coutinho, a mais antiga da cidade.
António Cardoso, dono da loja fundada em 1859 e inquilino do prédio, está radiante com a empreitada, até porque só terá a porta fechada durante uma semana. "Fazia-me muita diferença se fechasse mais tempo", diz o responsável. A sua família não foi a fundadora da ourivesaria, mas está ligada aos Coutinho há mais de 100 anos. O pai de António Cardoso começou a trabalhar na loja ainda novo e tornou-se sócio alguns anos mais tarde.
Rua tinha 30 ourivesarias
Aos 72 anos, o filho ainda recorda o movimento da rua quando por ali havia mais de 30 ourivesarias. Naquele tempo, insegurança era palavra pouco usada e no exterior das lojas colocavam-se nichos de vidro, apenas com um cadeado, para expor as peças em ouro e em prata. "Tínhamos cinco vitrinas lá fora, três com ouro", conta António Cardoso. Os expositores ficavam no exterior até à meia-noite e um guarda-nocturno bastava para dar conta do recado.
Actualmente, rua abaixo, já só existem seis ourivesarias. "A maioria fechou, uma minoria muito pequena mudou de localização", recorda António Cardoso. Na Coutinho, a herança tem mais de 160 anos e é para manter. As obras vão trazer mais conforto e segurança, mas no final o cliente pouca diferença notará. Os balcões de madeira serão conservados, os vidros ficarão mais espessos e seguros, o gradeamento menos agressivo ao olhar.
Todos os pormenores são olhados com atenção. O que está degradado substitui-se por novo, mas igual ao antigo. Foi a filosofia adoptada em todo o edifício porque, para Joaquim Massena, reabilitação não casa com demolição.
O arquitecto defende a recuperação dos processos construtivos tradicionais, o envolvimento da comunidade local e das micro-empresas neste processo e a necessidade de passar este conhecimento às escolas e universidades.
"A nossa passagem pelo edifício fica registada, mas é preciso que seja delicada", refere o arquitecto. As janelas são novas, mas as caixilharias continuarão a ser em betume, a madeira voltou a ser trabalhada; a balaustrada das escadas continua a exibir as marcas do tempo; a clarabóia cimeira está idêntica ao que era.
"A cidade tem de perceber que há modelos que ainda são exequíveis, não é preciso demolir", conclui Joaquim Massena.