Um bom exemplo de amor á profissão!

Publicada por Carlos Tendeiro | segunda-feira, junho 19, 2006

O guarda da Baixa Pombalina
O homem que não dorme na Rua Augusta

Manuel Nunes Neves leva 43 anos a vigiar as portas de uma das ruas mais emblemáticas da capital. O mais antigo guarda-nocturno da Baixa alfacinha já meteu os papéis da reforma e desfez-se do uniforme, mas continua alerta.

O chaveiro metálico não desgruda da sinistra, não vá o diabo tecê-las bem tecidas e perder-se de novo. “Já há muito tempo aconteceu com um molho de 15 chaves, tive de mandar fazer outras”, conta o Ti Manel embalando a ferramenta entre dedos zelosos, num tilintar que só não se arrasta quando os membros de cruzam atrás das costas em repouso e apertam o ramalhete descomposto de etiquetas - “alguma coisa hei-de trazer na mão!”, justifica, orgulhoso do entretém cujos dentes conhece de cor.

“Dantes eram maiores, tinha umas vinte e tal chaves, agora menos. Só das portas das escadas de prédios, onde entro para trazer o lixo. As lojas quiseram dar-me também, mas é uma grande responsabilidade”. Os 73 anos não pesam no espírito, apesar dos quilos que foram anafando o corpo patusco do guarda nocturno mais antigo da Baixa pombalina.

A idade é posto e lá foi perdoando, não fossem as peças que o destino pregou. Imperdoáveis. A anca que viu a sua asa esmagada, que lhe atirou as pernas para o coxeio, agravado pelo reumático. E um braço aleijado, o direito, que o deixou de ser depois de uma queda antiga que deu maus frutos.

“Andava às cerejas em miúdo e partiu-se uma pernada da cerejeira”, recorda, pesaroso. “Foi uma chatice nunca mo terem mandado arranjar. Ainda fui a pensar nisso, mais tarde, mas já não dava... Mas lá andei sempre bem”.

"ESTÁ TUDO TESO"

Assim ficou. Sem que os ossos abalados debilitassem o esqueleto do ofício ou atravancassem a marcha ligeira, calçada pelos confortáveis ténis brancos. Da meia-noite às seis da manhã, correm a rua Augusta, cima a baixo, baixo a cima, e as entradas dos edifícios onde repesca os sacos de lixo que empilha às portas, a troco de uns cobres.

O camião passa com a madrugada e trata do resto. E Manuel, um passageiro da noite, passa com ela. Lança-se às trouxas dos caixotes na discoteca Festival, o 280, e vai seguindo a fileira de números, revolvendo as fechaduras e maçanetas para ver se está tudo em ordem. “É dar uma voltita, um empurrãozinho. Já tem acontecido ficarem abertas”, justifica enquanto abranda o passo no 220. “O alarme de incêndios está escangalhado, já está assim há uns quantos dias”, observa.

Na ponta da língua bem disposta de Manuel Nunes Neves há sempre reparos a escaldar, prontos a vir ao mundo. Desenrola-se viperina quando os vendedores ambulantes ou os pedintes da zona lhe assediam os trocos ao pôr uma pausa na ronda para encostar o corpo a uma curva.

“Está tudo teso”, replica, com as meninas dos olhos protegidas pelas lentes que reflectem o quadriculado da camisa azul, a farda à civil que tomou as vezes do uniforme grudado ao corpo durante quase quarenta anos. “Compravamos os fatos usados à PSP, só o boné é que era diferente. Disse à minha mulher para o deitar fora, não sei se ainda lá está em casa. Recordação é os anos. Para que é que eu queria o uniforme?”, sustenta, pragmático.

'TI MANEL'

Memórias quentes, como as chamas esfomeadas dos idos incêndios na Igreja de São Domingos, nos falidos armazéns da Lanaldo, ou no Chiado. “Assisti a tudo. Ainda os bombeiros não tinham chegado, já eu lá estava”.

É pura prata da grande casa inabitada que é a rua Augusta, mobília com olhos de lince e dedos experimentados na vistoria das portas dos estabelecimentos, nas correntezas de alfaiates e cafés, onde os retalhistas disputam atenções com os franchisados das grandes cadeias e as histórias espreitam em cada beco.

“Tem de ser. Deixei de ser guarda há uns seis anos, quando meti os papéis. Correram comigo por causa do limite de idade. Como não veio para cá ninguém, fui ficando”. O sorriso maroto veste de descrédito a obrigação. O Ti Manel fá-lo por gosto e não se cansa. Enquanto as fachadas de rosto virado para a rua põem os sonos em dia, vai girando, movido a café para despistar o cansaço, para trás e para diante, sem segredos de monta.

“Ser um bom guarda-nocturno é não ir para as escadas dormir, é zelar pelas coisas”, sintetiza de um sopro só, longe dos ventos da banda de lá, de Almada, de onde vem todas as noites. Há 43 anos. Trá-lo a carrinha cinzenta que vem estacionar a um passo do trabalho, por portas e travessas.

“A malta já me conhece. A gaiatada chama-me ‘Ti Manel’, mas já de há muito. É muito tempo”. Tempo cego a caprichos do clima. Faça chuva de canivetes, faça lua, frio de cortar à faca ou calor de braseiro, quando o relógio marca meia-noite lá está ele, para marcar o ponto. “No Inverno a gente agasalha-se. Antigamente usava-se aqueles capotes compridos. Não havia frio”. “Hoje, estiveram a dizer no noticiário que ia chover, e não se enganaram”

Também a rotina não tem nada que saber. Em quatro décadas, cambiou a divisa mas garante que pouco mais mudou de figura. “Era a mesma coisa que é hoje. Agora há menos respeito do que havia nesse tempo, mas o serviço é o mesmo. Sempre se vai recebendo algum, mas isto aqui dá pouco. Há 40 anos vim ganhar um conto e duzentos.

A polícia só ganhava 800 escudos. Agora dão-me dez, quinze euros por cada casa. Aqui na baixa é tudo contas pequeninas”. Reduzidas, à medida das probabilidades de ver as hostes renovadas. “Ninguém quer vir para isto, para perder noites. É tão bom dormir com a mulher na cama!”, graceja.

Felisbela, a companheira, acostumou-se aos lençóis arrefecidos, às madrugadas solitárias e aos raspanetes caídos em saco roto. “É uma questão de hábito. Às vezes ralha por eu vir à noite. Dantes ela trabalhava na praça da Ribeira, fazia fretes, e vinha cá ter comigo de manhã. Estar de dia e de noite em casa também é muito. Gosto de lá estar só para dormir”.

É de tarde, entre as três e as nove, que a cabeça aterra na almofada e se deixa arrastar por uma vigília mais descansada. O sono dos justos. Rotina que o irmão mais velho, já falecido, conhecia de perto. “Foi ele que me puxou para cá, também era guarda-nocturno”. E assim Manel veio da terra, de Adecasal, concelho de Arganil, aos 30 anos.

Estreou-se a tomar conta da noite em Xabregas. Por pouco tempo, que a rota do guarda estava dirigida ao centro, onde os defeitos se entrelaçam com as virtudes. “Lá nem recebia um tostão. Foi só para fazer a troca com um colega. Depois vim para a rua dos Fanqueiros, depois rua da Prata, e depois a rua Augusta”.

Viveu três anos num quarto em plena Rua do Norte, no coração da boémia que mantém as agulhas apontadas para o castiço Bairro Alto e à noite suga as gentes para as suas veias fervilhantes deixando a Baixa despida. “Vai tudo para lá agora. Nunca lá fui à noite, nem sei que vão lá fazer, aquilo não tem nada para ver!”

Ainda se mudou para a Pampulha, na zona de Alcântara, antes de se fixar a sul, com a mulher e os três filhos debaixo da asa. “Ela não fez mais!”, ri-se Manel, “Mas eu nem queria tantos. Os meus filhos todos também me ralham. Não querem que eu cá ande”. Reprimendas de quem trabalha apartado do regaço da noite, dos perigos e sombras que descem à cidade quando o sol se esconde.

“É uma profissão arriscada, mas nunca tive problemas com ninguém. Complicações há sempre, mas de registo nenhumas. Andei 40 anos com a pistola e nunca a tirei do coldre. Roubos, toda a vida houve. Já os havia antes de vir para cá e continua a haver. Ainda há pouco tempo andei à porrada com um tipo. Queria levar-me o telemóvel. Não conseguiu!”, esclarece, de peito inchado pela inesperada façanha. “E no outro dia, estava ali na esquina e partiram o vidro de um restaurante”.

HISTÓRIAS DE UMA VIDA

É a esquina onde a sua jurisdição definha e o colega Lourenço se faz à vida. Quando a perpendicular rua da Assunção se intromete no caminho dos paralelos da vetusta senhora dona Augusta, à espera que um Marquês a despose de novo. “De dia, as pessoas quase se atropelam na rua. À noite é o que se vê. Não há ninguém. É isto que chateia. Mora aqui muito poucochinha gente. Neste quarteirão, só três pessoas, aqui deste lado mais dois casais”, aponta Manel.

“A câmara devia ver isto, ou o Governo, se é que o temos, não sei se temos...”, lá vai lamentando. “A rua Augusta é a mais conhecida da Baixa. Mas a Baixa está muito morta. Isto é tudo prédios velhos. Os mais novos não querem vir para cá viver e os velhos vão morrendo. Mas temos bons prédios. Isto era arrasar tudo e fazer de novo”, opina o guarda.

Falta sangue novo para salpicar as pedras antigas do xadrez da Baixa: os sem-abrigo, os artistas de rua que exibem telas e artesanato aos turistas flutuantes, os habitués do vizinho Animatógrafo, os colegas do Grémio Lisbonense que acompanha num copito, “o gado de arribação” que alvoraça a esplanada do Ninho Dourado – onde começa sempre a noite – depois de tombadas mais cervejas que a conta.

Os novos inquilinos não chegam para guindar os ânimos. Como as espécies de quatro patas da Cow Parade, “Já não me dizem respeito, mas se quiserem leite é só trazer o caldeiro!”, brinca. Mais a bandeira lusa em tamanho XL que engalana a rua a pretexto do Mundial e dos festejos que se desejam longos, íman de foliões para encher a rua até às tantas.

De verde, vermelho e amarelo, ora mais dourado ou canário, ao sabor das vitórias portuguesa e brasileira. “Quando foi cá o Euro, isto aqui era tudo cheio até às quinhentas. Agora, Portugal vai ganhar mas é juízo!”, vaticina Manel, com o depósito de confiança a zeros, por atestar.

Já o álcool, é apenas um dos combustíveis que dá guarida às histórias que nascem e se enterram na noite. “Falo com muita gente. Conheço muitas coisas que não posso contar, com o privado não se brinca. Histórias de bebedeiras que temos que aturar por aí, coisas passageiras”, relativiza, com uma gargalhada cúmplice que não disfarça a falsa verdade.

Uma alegria que vai adiando a despedida, até à data confinada à papelada da reforma. Mera formalidade endereçada a quem excedeu os 65, mas não quer, nem sabe, abandonar o activo. “Há tanto tempo que penso em reformar-me de vez.... Quando me reformei era para ir logo para a terra, mas para a minha mulher tomar conta dos netos fui ficando cá. Vou tirando férias repartidas, uns oito, quinze dias, quando preciso de ir à terra. Nunca meto folgas”, explica o Ti Manel, como quem presta contas ao patrão.

“Se não fosse guarda acho que ia para a terra. Tenho lá terrenos e governava-me. Mas Lisboa é sempre Lisboa, gosto de cá, governei cá a vida.”Uma Lisboa onde se escreve em cada passo o verbo ficar. “Por aqui vou ficando, olhe...”, despede-se o Ti Manel.

VISITA GUIADA COM O 'TI MANEL'

OS PASSOS DE UMA JORNADA FORA DE HORAS

1: Junto a uma ‘Mimosa’ da Cow Parade, uma das recentes atracções da zona inerte como o movimento nocturno da sua rua.

2: Inseparável do seu chaveiro, o objecto tornou-se a sua imagem de marca.

3: Primeira paragem: o 280, um dos muitos prédios velhinhos da Baixa.

4: Junto às escadas que conduzem à discoteca Festival, o guarda arrasta o primeiro caixote de lixo

5: Missão cumprida. Vamos ao próximo.

6: O Ti Manel verifica uma das portas da correnteza. Tudo em ordem.

7: Nova paragem, agora no 220. É preciso ir buscar os sacos do lixo ao quarto andar. O elevador dá uma ajuda.

8: Uma pausa para fiscalizar o alarme que já conheceu melhores dias.

9: À saída, de chaves em riste para trancar mais uma porta.

10: A carrinha de Manuel trá-lo até ao centro de Lisboa e devolve-o à margem Sul quando a noite termina. Até às seis da manhã, repousa junto ao elevador de Santa Justa.